Paulo Freire e sua experiência de alfabetização de adultos em Angicos tem dividido opiniões a mais de meio século, e a questão que se coloca até hoje é: o que é ser alfabetizado
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Uma Experiência Inovadora
Em 1963, no pequeno município de Angicos, no interior do Rio Grande do Norte, o Brasil vivenciou uma experiência revolucionária no campo da educação. Sob a liderança do educador Paulo Freire, 300 trabalhadores rurais foram alfabetizados em apenas 40 horas, um feito que desafiou as práticas tradicionais de ensino e consolidou Freire como um dos maiores pensadores da educação do século XX.
A metodologia utilizada nessa experiência, que ficaria conhecida como “método Paulo Freire”, não apenas ensinou os adultos a ler e escrever, mas também os engajou em um processo de conscientização política e social, transformando profundamente suas relações com o mundo ao redor.
Paulo Freire acreditava que não bastava decodificar sinais gráficos para ser considerado alfabetizado, era necessário conhecer as implicâncias políticas de cada significado para gerar consciência e possibilitar a leitura não apenas de palavras, mas do mundo.
Alfabetização e Voto
Entre os vários motivos que se poderia elencar sobre a importância da alfabetização, havia um que justificava as constantes intervenções dos governos desde a década de 40 em favor da alfabetização de adultos: o voto. Era necessário ser alfabetizado para votar, por isso havia um grande esforço político para que adultos fossem capazes de ser considerados alfabetizados.
Mas o que era ser alfabetizado para fins eleitorais? Estritamente para este fim, significava saber assinar o próprio nome, e assim registrar seu voto nas urnas durante os pleitos eleitorais. Para Paulo Freire, isso era não somente muito pouco, era absurdo. O voto realizado desta maneira servia apenas para manter no poder quem já estava, e para legalizar o voto de cabresto tão popular no país, principalmente em áreas mais rurais (até 1940, a grande maioria da população vivia no campo).
O conceito de alfabetização, portanto, precisava ir além do mero ato de saber assinar o nome. Era preciso compreender a realidade do país, e realizar uma escolha consciente por quem seria o representante político dos diversos grupos sociais. Para isso seria necessário ampliar o método para uma análise crítica das palavras, e não apenas por sua decodificação.
Essa escolha conceitual, e consequentemente metodológica, era o que Paulo Freire e outros educadores consideravam a mais assertiva para as necessidades do país. Contudo, se mostrou uma escolha perigosa, tendo em vista que incomodava setores acostumados a estar no poder desde sempre, e que confundia o poder e a propriedade pública com o privado, como atestava já Gilberto Freire em sua obra literária.
Angicos
Angicos era um município marcado pelo analfabetismo e pela pobreza, como tantas outras cidades do Nordeste brasileiro. Paulo Freire e sua equipe identificaram nesse cenário uma oportunidade: transformar a alfabetização em uma ferramenta de emancipação social. A iniciativa contou com o apoio do governo estadual e federal, além de organismos internacionais, como a Aliança para o Progresso, que viam na educação um caminho para o desenvolvimento.
Naquele momento o país era presidido por João Goulart, o Jango, e a alfabetização de adultos com vias à emancipação política e cultural era uma das Reformas de Base idealizadas por ele. Por isso um grupo de educadores, em sua maioria provenientes de Minas Gerais, foi selecionado para iniciar o projeto de educação de adultos, sendo a cidade de Angicos o marco inicial dessa experiência.
O Método proposto por Paulo Freire
Paulo Freire propôs como método para alcançar os objetivos do governo algo inusitado para a época. Ele não se basearia nas cartilhas tradicionais da época, como a cartilha “Caminhos Suaves“, mas em um processo pedagógico inovador que partia da realidade dos educandos. As primeiras palavras ensinadas não eram abstrações ou termos desconectados da vida cotidiana, mas vocábulos que tinham significado direto para os trabalhadores: “tijolo”, “enxada”, “milho”.
Essas palavras geradoras, como eram chamadas, funcionavam como ponto de partida para reflexões mais amplas sobre o contexto social, econômico e político em que os alunos estavam inseridos. Assim, a alfabetização não era apenas uma questão técnica, mas um ato político, como Freire gostava de enfatizar.
O sucesso da experiência de Angicos estava intrinsecamente ligado à metodologia e à compreensão profunda de Paulo Freire sobre os desafios do analfabetismo. Para ele, não bastava ensinar as letras e as palavras; era preciso resgatar a autoestima dos educandos e levá-los a compreender seu lugar no mundo.
Nesse sentido, o método apostava na dialogicidade, ou seja, no diálogo como ferramenta pedagógica. Os professores não eram vistos como detentores do saber que transmitiam conhecimentos de forma unilateral; ao contrário, eram mediadores que aprendiam com os alunos enquanto ensinavam.
Outro fator crucial para o sucesso foi a intensa preparação da equipe. Antes de iniciar o processo de alfabetização, os educadores passaram por um treinamento rigoroso, em que aprenderam a aplicar o método e a compreender as especificidades da realidade local.
Esse preparo incluiu visitas às comunidades, entrevistas com os futuros alunos e a elaboração de um vocabulário inicial que dialogasse diretamente com as experiências de vida dos trabalhadores. Essa abordagem respeitosa e empática foi fundamental para conquistar a confiança e o engajamento dos educandos.
As sessões de alfabetização em Angicos aconteciam em um ambiente simples, muitas vezes nas próprias casas dos alunos ou em espaços comunitários improvisados. Não havia luxo, mas havia uma atmosfera de entusiasmo e colaboração. Cada sessão era um momento de descoberta, em que os educandos não apenas aprendiam a decifrar as palavras, mas também a se enxergar como sujeitos capazes de transformar suas próprias realidades.
Um aspecto central dessa experiência foi a incorporação da dimensão política no processo educativo. Paulo Freire acreditava que a alfabetização era um ato de liberdade, uma forma de os trabalhadores compreenderem as estruturas de opressão que os mantinham em situações de pobreza e submissão.
Durante as aulas, surgiam debates sobre questões como reforma agrária, direitos trabalhistas e organização política. Esse enfoque despertava nos alunos um senso de pertencimento e de possibilidade de mudança, algo que transcendeu o simples aprendizado da leitura e escrita.
O impacto da experiência de Angicos foi imediato e profundo. Em poucas semanas, os 300 trabalhadores não apenas se tornaram alfabetizados, mas também passaram a participar de maneira mais ativa nas decisões de suas comunidades. Muitos relatavam que a alfabetização lhes deu coragem para reivindicar direitos, questionar injustiças e assumir um papel mais protagonista em suas próprias vidas. Para Freire, esse era o verdadeiro sentido da educação: libertar as pessoas da opressão e capacitá-las a construir um mundo mais justo.
Reações Políticas Adversas
Porém, a experiência de Angicos não foi apenas um marco educativo; também gerou reações políticas intensas. Em 1964, com o golpe militar, o método Paulo Freire foi taxado de subversivo, e o educador foi preso e posteriormente exilado. Apesar disso, as sementes plantadas em Angicos germinaram e influenciaram movimentos de educação popular ao redor do mundo, tornando-se referência em países da África, América Latina e até mesmo na Europa.
Ao analisar como foi possível alcançar os resultados em Angicos, é importante destacar a combinação entre teoria e prática que caracterizou o trabalho de Paulo Freire. Sua abordagem partia de uma compreensão filosófica e sociológica do analfabetismo, mas estava profundamente enraizada na realidade concreta dos educandos. Ele não via os alunos como recipientes vazios a serem preenchidos com informações, mas como sujeitos ativos, capazes de construir conhecimento a partir de suas próprias experiências.
Outro ponto essencial foi o caráter coletivo do projeto. A experiência de Angicos não foi obra de um homem só, mas de uma equipe comprometida e engajada com a causa da educação popular. Essa dimensão coletiva reflete a própria filosofia de Freire, que via a educação como um ato comunitário, baseado na solidariedade e no diálogo.
O método de alfabetização de Paulo Freire, contudo, esbarrou em um momento histórico que principiava para um golpe desde o governo de Vargas. O Brasil vivia um período de efervescência social, com uma parte da sociedade conservadora se unindo a grupos militares contra o que era considerado uma tentativa de invasão comunista da URSS. Por outro lado, havia movimentos favoráveis às reformas de base propostas por Jango que buscavam combater as desigualdades e promover a justiça social.
Nesse cenário, a educação popular se apresentava como uma ferramenta poderosa para a transformação da realidade, mas também como uma ameaça aos planos golpistas que estavam em andamento. Neste conflito, o golpe de 64 encerrou o trabalho iniciado por Freire, atrasando em décadas o desenvolvimento social do país.
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