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Os Segredos do Pentateuco | Arqueologia contesta autoria de Moisés

Como um povo em exílio reconstruiu sua fé e identidade unindo antigas tradições orais em um dos textos mais sagrados da humanidade? Descubra a origem do Pentateuco sob uma nova luz histórica.

Tempo de Leitura: 10 min

Quem escreveu o Pentateuco?

Você já se perguntou se foi mesmo Moisés quem escreveu o Pentateuco? E o que significa, afinal, a palavra “Torá”? Se essas perguntas despertam sua curiosidade, prepare-se para mergulhar em um dos temas mais fascinantes da história da fé e da formação da tradição bíblica: a origem do Pentateuco, também conhecido como Torá.

O Pentateuco é o nome dado aos cinco primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Para o judaísmo, esse conjunto é chamado de Torá, que em hebraico significa “instrução” ou “lei”. Esses livros formam o coração da fé judaica, sendo considerados a revelação divina dada ao povo de Israel por meio de Moisés. Já para os cristãos, o Pentateuco representa a base da história sagrada e da promessa divina, que mais tarde se cumpre com a vinda de Jesus Cristo.

Mas afinal, por que esses cinco livros são tão importantes? Para os judeus, a Torá é o eixo central da identidade do povo escolhido: ali estão não apenas os relatos da criação do mundo e da origem de Israel, mas também as leis que organizam a vida espiritual, moral e social da comunidade. No cristianismo, esses mesmos textos são vistos como o início da revelação de Deus, essenciais para compreender o plano divino que se desenrola ao longo de toda a Bíblia.

Segundo a tradição religiosa, tanto judaica quanto cristã, a autoria desses livros é atribuída a Moisés, o grande líder que teria libertado o povo hebreu da escravidão no Egito e recebido as leis diretamente de Deus no Monte Sinai. Essa ideia está presente em passagens bíblicas e foi sustentada por séculos como uma verdade incontestável. Moisés seria, portanto, o autor inspirado da Torá (ou Pentateuco), mesmo dos trechos que narram eventos anteriores ao seu nascimento — como a criação do mundo ou a vida dos patriarcas.

Contudo, a partir do século XVIII, estudiosos começaram a analisar os textos do Pentateuco com novas perguntas. Por que há histórias repetidas, como duas versões da criação? Por que Deus é chamado por nomes diferentes (Elohim e Javé)? Por que o estilo muda tanto de um trecho para outro? Essas observações levaram à formulação da hipótese das fontes, também conhecida como hipótese documentária, que propõe que o Pentateuco foi escrito por múltiplos autores, em diferentes épocas da história de Israel, e depois reunido por redatores anônimos.

De acordo com essa teoria, o texto teria começado a ser escrito por volta do século X a.C. e passado por várias fases até ser consolidado entre os séculos VI e V a.C., especialmente após o exílio do povo judeu na Babilônia. Mas para compreender melhor esta teoria, precisamos relembrar alguns eventos importantes da história do povo judeu, como a organização dos reinos, suas tradições orais e escritas, e o retorno após o exílio na Babilônia.

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Uma análise arqueológica que revisita a historicidade da Bíblia Hebraica, incluindo reflexões sobre o Pentateuco, sua composição e contexto histórico

O Pentateuco antes do Exílio

Se a teoria, ou hipótese, das fontes estiver correta, ficamos com essas estranhas perguntas no ar: o que havia antes do Século V a.C.? Quando as diversas fontes teriam sido compiladas formando o que seria o Pentateuco ou Torá? Sem o peso da autoria de Moisés, estes textos teriam tido a mesma importância na formação do povo judeu? Sem o formato escrito, e o status de texto sagrado, como estes textos conseguiram sobreviver por tantos séculos?

Essas são algumas dúvidas razoáveis que podem nos levar a questionar a hipótese das fontes, mas que não chegam a invalidá-la completamente. Talvez soe estranho para habitantes de um mundo moderno imaginar como o conhecimento pode se perpetuar sem um registro escrito, mas as tradições do oriente tinham outros mecanismos de preservação da memória muito antes da palavra escrita, e dos textos compilados pelos escribas, se tornarem um padrão. O que existia antes era uma rica e complexa tradição oral, além de textos mais antigos e fragmentados, que circularam por séculos entre o povo hebreu.

📖 O tempo da memória falada

Antes mesmo da escrita se tornar comum, as histórias que hoje lemos na Bíblia eram transmitidas de boca em boca. Eram contadas ao redor do fogo, em reuniões tribais, nas festas e cerimônias religiosas. Relatos como a criação do mundo, o dilúvio, a vida de Abraão, a travessia do deserto e os mandamentos recebidos por Moisés já faziam parte da identidade do povo de Israel, mesmo que ainda não estivessem registradas em pergaminhos.

Essas tradições orais tinham grande força: eram cuidadosamente memorizadas e passadas de geração em geração com profundo respeito. A oralidade não era vista como algo frágil, mas como um instrumento poderoso de preservação da fé e da cultura.

✍️ Quando a memória virou escrita

Com o tempo, especialmente a partir do século X a.C., quando surgiram os reinos de Israel (ao norte) e Judá (ao sul), começaram a surgir também textos escritos, produzidos em centros políticos e religiosos. Nessa fase, tradições antes orais começaram a ser registradas em documentos independentes, os quais refletiam o contexto em que foram criados.

O Reino do Sul falava de um Deus próximo e protetor, enquanto o Reino do Norte valorizava relatos ligados a seus patriarcas e heróis. As reformas religiosas, por sua vez, enfatizavam a Lei e a adoração centralizada. Essas fontes coexistiram por muito tempo, sendo copiadas, adaptadas e talvez até misturadas em certas ocasiões.

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E então veio o exílio …

Com a destruição de Jerusalém no século VI a.C., e o exílio do povo judeu na Babilônia, surgiu uma grande crise de identidade: o povo estava longe da terra prometida, sem templo, sem rei. Como manter a fé viva num momento assim? A resposta foi olhar para trás. Sacerdotes e escribas começaram a organizar e preservar todas as tradições que haviam sobrevivido, tanto orais quanto escritas.

Com o retorno do exílio, por volta de 538 a.C., autorizado pelo rei persa Ciro, iniciou-se um esforço de reorganização religiosa e cultural. Escribas, como Esdras e Neemias, desempenharam papel central na reunião e edição das tradições antigas, consolidando os textos mais importantes para a manutenção da identidade do povo que retornava do exílio.

Nesse contexto, a tradição sacerdotal ganhou força, trazendo ordem, genealogias, rituais e um senso de continuidade mesmo em meio ao caos. Finalmente, por volta do século V a.C., esses diversos materiais foram unidos e editados por sábios judeus — um verdadeiro trabalho de costura literária e espiritual que resultou no Pentateuco.

Segundo a teoria das fontes, é nesse período que as diferentes tradições teriam sido finalmente reunidas, resultando na versão unificada da Torá, como conhecemos hoje.

A Teoria das Fontes

Um dos pontos de apoio mais fortes da Teoria das Fontes é a multiplicidade de versões e nomes utilizados no texto do pentateuco para se referir aos mesmos fatos e personagens. Por que a criação do mundo é apresentada em Gênesis 1 e depois de novo em Gênesis 2? Ou por que o nome de Deus muda em certas passagens, sendo chamado de Elohim em alguns trechos e Javé (YHWH) em outros? Esses e outros indícios levantaram suspeitas entre estudiosos a partir do século XVIII, especialmente na Europa, dando início ao que viria a ser uma das teorias mais influentes — e controversas — da crítica bíblica moderna.

A chamada Hipótese das Fontes propõe que o Pentateuco não foi escrito por um único autor (Moisés), mas composto a partir de várias tradições e documentos independentes, escritos por diferentes grupos ao longo de séculos. Esses textos teriam sido unidos mais tarde por editores (ou redatores) que deram forma ao que hoje conhecemos como Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.

Como fica Moisés dentro da Hipótese Documentária

Na Hipótese Documentária, Moisés não é considerado o autor literal do Pentateuco, mas sua figura continua sendo fundamental e central para a tradição bíblica. Mesmo que os cinco primeiros livros da Bíblia tenham sido compostos por múltiplos autores ao longo de séculos, segundo essa teoria, Moisés aparece como o grande mediador entre Deus e o povo de Israel, e é nele que as diferentes fontes ancoram a autoridade da Lei e da revelação.

As fontes eloísta (E) e deuteronomista (D), por exemplo, dão destaque especial à atuação de Moisés como líder, profeta e legislador. É ele quem conduz o povo na travessia do deserto, quem sobe ao Sinai para receber os mandamentos, e quem ensina as leis que organizam a vida do povo. Ainda que esses textos tenham sido escritos muito depois dos eventos que narram, os autores e redatores os atribuem a Moisés para garantir legitimidade e continuidade com a tradição ancestral.

Assim, dentro da Hipótese Documentária, Moisés é menos o “escritor” da Torá e mais o fundador simbólico da fé israelita, cuja memória inspirou gerações a preservar, reinterpretar e compilar os ensinamentos que deram origem ao coração da Bíblia Hebraica.

📜 Uma teoria que divide opiniões

Como você deve imaginar, essa teoria provocou — e ainda provoca — fortes reações. Para muitas pessoas de fé, especialmente aquelas que seguem interpretações mais tradicionais, a ideia de que Moisés não tenha sido o único autor da Torá pode parecer desestabilizadora. Afinal, a autoria mosaica sempre foi vista como um selo de autoridade espiritual e divina.

Por outro lado, para estudiosos e arqueólogos, a Hipótese das Fontes não nega o valor espiritual ou teológico do texto, mas busca compreender como ele foi formado historicamente, dentro de contextos políticos, religiosos e culturais específicos. Essa abordagem permite entender, por exemplo, por que certos trechos parecem refletir preocupações diferentes — como a centralização do culto em Jerusalém ou o papel dos sacerdotes levitas.

É importante destacar que, nos últimos anos, a Hipótese das Fontes tem passado por revisões. Alguns estudiosos defendem que, em vez de quatro documentos bem definidos, o Pentateuco foi resultado de uma tradição literária fragmentada, composta por pequenos blocos de textos e tradições orais reunidos ao longo do tempo. Ainda assim, a ideia básica — de que o texto é resultado de uma evolução literária e teológica — permanece como uma das chaves para a compreensão moderna da Bíblia.

Veja mais sobre história bíblica.

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Sobre o Autor

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Valdiomir Meira é licenciado em História e Letras, com pós-graduação em metodologia de ensino da língua portuguesa, metodologias inovadoras de educação e semiótica. Sua grande paixão é ler, viajar e ensinar. Leitor dedicado de quadrinhos e pesquisador nas áreas de educação e mitologia. Além de outras atuações profissionais, como criação de conteúdo para internet e tutoriais, também é redator e editor de artigos para blogs.

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