Perigo de rompimento de barragem assusta população de Minas Gerais, ainda assombrada pela tragédia de Brumadinho. Entenda o perigo!
Interior de Minas Gerais, onde as colinas ecoam com a melodia solene de canções clássicas, tocadas em um cenário desolado, sem plateia para apreciá-las. O silêncio é quebrado pelo eco distante das sirenes, ecoando através das ruas tranquilas, trazendo consigo a ordem imperativa de abandonar os lares, trancar portas e fechar janelas. O som de um helicóptero em sobrevoo adiciona uma tensão palpável ao ambiente. As vozes da Defesa Civil ecoam, instruindo os moradores a manter a calma em face do perigo iminente. Era a barragem que tinha se rompido.
Este não é o enredo de um conto de realismo fantástico, mas sim a descrição de uma simulação realizada pela mineradora ArcelorMittal, em colaboração com a Defesa Civil, na cidade de Itatiaiuçu, onde se localiza a Mina de Serra Azul. O propósito deste treinamento é educar a população sobre os procedimentos a serem seguidos em caso de uma evacuação de emergência, desencadeada pelo possível rompimento da barragem.
Barragem de Mina de Serra Azul
A Mina de Serra Azul, localizada em Itatiaiuçu, é de propriedade da ArcelorMittal. A barragem associada a esta mina, construída em 1987, encontra-se atualmente em um processo de descaracterização, envolvendo a remoção de todo o rejeito armazenado em seu interior.
Devido aos riscos associados a esta barragem, as rotinas das comunidades vizinhas, incluindo Pinheiros, Samambaia, Curtume, Quintas do Itatiaiuçu, Lagoa das Flores, Retiro Colonial, Capoeira de Dentro e Vieiras, foram significativamente alteradas. Estima-se que cerca de 2 mil pessoas, de um total de aproximadamente 13 mil habitantes do município, estejam em áreas potencialmente afetadas pelo eventual rompimento da barragem.
Entre os afetados por esse empreendimento está Luzia Soares de Souza, uma mulher negra que faz parte de uma comissão composta por outros 14 membros, dedicada à defesa dos direitos dos residentes locais. Luzia continua lutando para obter um acordo que compense as perdas sofridas devido à Mina de Serra Azul.
Em março de 2022, a Agência Nacional de Mineração (ANM) reclassificou a barragem, elevando seu nível de risco de 2 para 3, em uma escala que varia de 1 a 3. O nível 3 indica um risco iminente de ruptura ou mesmo ocorrência de ruptura, embora a ArcelorMittal negue que a Mina de Serra Azul esteja em tal condição.
A situação das famílias se agravou cerca de três anos antes, em 8 de fevereiro de 2019, quando a ArcelorMittal começou a realocar os moradores da comunidade de Pinheiros que se encontravam na chamada Zona de Autossalvamento (ZAS) da Mina de Serra Azul. Isso foi necessário devido à ativação do Plano de Ação de Emergência para Barragens de Mineração (PAEBM) da barragem da Mina Serra Azul, que teve seu nível de emergência elevado para 2. Nessa fase, 56 famílias foram realocadas e passaram a residir em imóveis alugados pela empresa.
Para mitigar os possíveis danos causados pelo rompimento da barragem, a ArcelorMittal se comprometeu a construir uma Estrutura de Contenção a Jusante (ECJ). As obras iniciaram em 2022 e têm previsão de conclusão para 2025. Até lá, os residentes locais vivem com o constante temor de enfrentar uma tragédia semelhante ao rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, ocorrido em Brumadinho, também em Minas Gerais, em janeiro de 2019.
Quinze dias após o desastre em Córrego do Feijão, 90 famílias de Pinheiros, Lagoa das Flores e Vieiras foram obrigadas a deixar suas casas.
O Testemunho do Sofrimento
Em uma entrevista, Luzia Soares de Souza compartilhou por que escolheu aquela localidade para criar sua filha, enfatizando o ambiente tranquilo que buscava. Entretanto, a barragem corroeu não apenas as terras, mas também os laços familiares e de amizade. No caso de Luzia, o medo constante do rompimento afastou seus irmãos, que deixaram de visitá-la por temor à tragédia iminente.
O mesmo ocorreu com amigos que tinham familiares idosos, cuja mobilidade limitada poderia colocá-los em risco durante uma evacuação. Muitos dos residentes locais optaram por se mudar para cidades maiores, como Belo Horizonte, Betim e Contagem.
“A minha filha, que morava comigo, foi embora com medo. No começo, fiquei meio perdida, demorou para cair a ficha. Quando percebi, comecei a sofrer de depressão, perdi o apetite e o sono. Passei cerca de quatro meses fora, mas eventualmente retornei. Fechava os olhos e via a cena de Brumadinho se repetindo, mesmo sabendo que aqui não havia indicações de ruptura iminente da barragem”, desabafou.
Pablo Dias, membro do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), destaca a heterogeneidade dos moradores locais. Alguns possuíam sítios e passavam temporadas na região, enquanto outros eram idosos em busca de tranquilidade na aposentadoria. No entanto, a estratégia da mineradora de considerar apenas danos individuais dificulta o reconhecimento da condição de atingido para muitos residentes. O sofrimento acumulado sobrecarrega os serviços de saúde locais, tornando ainda mais difícil para os afetados obter o suporte necessário.
“A vida das pessoas está em suspenso desde a ativação do plano de emergência. Elas não sabem se devem investir na reconstrução de suas casas ou não, pois o futuro da comunidade é incerto. Muitos dizem que essa lama invisível destruiu seus sonhos e projetos de vida”, acrescentou Pablo Dias.
Efeitos na Economia Local
Outra questão crítica destacada por Luzia é a informalidade das relações na comunidade, onde acordos muitas vezes eram feitos de forma verbal, baseados na confiança mútua. Isso se tornou um obstáculo para o reconhecimento dos residentes como atingidos, já que comprovar laços, como entre inquilinos e proprietários, tornou-se uma tarefa árdua.
“É uma comunidade onde as pessoas alugam para outras e combinam verbalmente: ‘é tanto por mês, no final do mês você me paga, não se preocupe com o recibo’. Em algumas áreas, não há eletricidade, em outras, não há água. Os documentos estão em nome dos proprietários, e as contas também. É o tipo de relação que se vê no interior, onde se confia uns nos outros. A ArcelorMittal quer que você tenha um contrato de aluguel, contas de água e luz. Já ouviu falar de casas cedidas, onde um dá para o outro, cuidando, tomando conta, na confiança de que não haverá usucapião? Isso é muito comum aqui”, ressalta a líder comunitária.
O imóvel onde Luzia reside foi cedido a ela e está atualmente anunciado para venda. No entanto, nenhum interessado em fazer negócio apareceu. Ela estima que muitas propriedades tenham perdido até 70% de seu valor de mercado.
O MAB destaca outras estratégias da ArcelorMittal para negar o reconhecimento dos moradores como atingidos. Uma delas é reconhecer apenas um dos membros de um casal, mesmo quando há documentos, como certidões de casamento, comprovando a união.
Questões Graves de Contaminação
Quanto ao curso de cerâmica oferecido pela empresa, utilizando argila proveniente dos rejeitos da barragem, Luzia relata uma situação alarmante: “As pessoas estavam modelando argila para fazer peças. Uma pessoa que participava do curso teve uma reação alérgica e o curso foi interrompido. Quando perguntamos o motivo da alergia, a organização do curso não soube explicar, mas admitiu que estava usando rejeitos da mineração. Pedimos ao Ministério Público que investigasse o que estava acontecendo, pois pode ser que não seja proveniente dos rejeitos, mas há uma alta probabilidade de que seja”, diz a moradora, explicando que o laudo ainda está em andamento e o curso não foi retomado.
“Eles não têm o mínimo respeito pelos atingidos, já que a lama que pode inundar nossas casas e destruir nossas vidas é a mesma com a qual devemos trabalhar”, desabafa.
Para Luzia, a mensagem que a ArcelorMittal tenta passar é que está fazendo um favor aos moradores da comunidade. “É como se os residentes tivessem prejudicado a empresa, e não o contrário”, resume.
Medidas de mitigação
Em 19 de junho de 2023, a ArcelorMittal e a Comissão de Pessoas Atingidas de Itatiaiuçu assinaram um Termo de Acordo Preliminar (TAP) visando garantir a reparação dos danos coletivos causados pelo risco de rompimento da barragem Serra Azul. O acordo, firmado também com o Ministério Público de Minas Gerais, o Ministério Público Federal (MPF) e a prefeitura local, previa recursos de R$ 440 milhões da ArcelorMittal para a reparação dos danos transindividuais. Além disso, estabeleceu-se que as vítimas continuariam a ter direito a uma assessoria técnica independente, além de auditoria financeira externa, beneficiando as 655 famílias já cadastradas e outras 540 incluídas no acordo.
Segundo o MAB, o Termo de Acordo Complementar (TAC), que ampliaria os direitos dos atingidos, está sendo construído em conjunto com o Ministério Público e a empresa, contando com 65 propostas até o momento.
Riscos para os trabalhadores
O Ministério Público do Trabalho (MPT) interveio nas atividades da ArcelorMittal, alegando que a circulação de funcionários na área da Mina de Serra Azul exigia mais cuidados. Em novembro de 2023, foi firmado um acordo judicial entre o órgão e a mineradora, obrigando-a a adotar medidas de segurança para os funcionários próprios e terceirizados que prestam serviços na área e na respectiva Zona de Autossalvamento (ZAS), incluindo as atividades de construção da ECJ.
“A ArcelorMittal deverá pagar a quantia líquida de R$ 10 milhões, destinada à promoção de saúde e segurança no ambiente de trabalho e prevenção de acidentes, conforme determinado pela Resolução 179/2020 do Conselho Superior do Ministério Público do Trabalho (CSMPT), apoiando iniciativas filantrópicas, culturais, educacionais, científicas, assistenciais ou voltadas para o desenvolvimento e melhoria das condições de trabalho”, determinou a procuradora Adriana Augusta Souza.
O Outro lado
A ArcelorMittal Brasil, segmento responsável pela produção de aço, é uma das principais empresas do setor de mineração em todo o mundo. Em 2022, sua receita líquida consolidada atingiu R$ 71,6 bilhões.
A empresa mantém uma página informativa sobre a Mina de Serra Azul, destacando indicadores de monitoramento da barragem 24 horas por dia, sete dias por semana, e alertando que nenhuma imobiliária ou corretor está autorizado a tratar de assuntos relacionados à compra e venda de imóveis com os moradores.
Em resposta à Agência Brasil, a ArcelorMittal afirmou estar comprometida com a reparação dos danos causados pelo acionamento do Plano de Ação de Emergência para Barragens de Mineração (PAEBM) da Mina de Serra Azul. A empresa confirmou que o reconhecimento da condição de atingido depende da apresentação de provas, sendo o comprovante de residência a principal delas. Quanto à argila utilizada no curso de cerâmica, a empresa afirmou que não representava risco à saúde, pois foi previamente estudada e os alunos utilizavam equipamentos de proteção individual.
A empresa também ressaltou que está construindo a ECJ, uma estrutura destinada a reter todo o rejeito no caso de um eventual rompimento da barragem. A conclusão da ECJ, prevista para setembro de 2025, permitirá o início dos trabalhos de descaracterização da barragem, que consiste na remoção de todo o material em seu interior e no desmonte da estrutura. A ArcelorMittal assegurou que a construção da ECJ não causou danos às casas dos moradores nem ultrapassou os limites legais de ruído, conforme demonstrado por laudos técnicos submetidos às autoridades.
Governo Federal
Em nota, a Agência Nacional de Mineração (ANM), responsável pela divulgação de um relatório anual sobre a segurança das barragens, informou que a barragem, que estava registrada com uma solução de engenharia já finalizada, possui uma versão preliminar do projeto executivo elaborado com base no conhecimento pré-existente da estrutura, conforme constatado em uma recente fiscalização in loco realizada pelo órgão. A ANM também destacou que as fases de projeto da descaracterização e a execução das obras continuarão conforme os funcionários puderem trabalhar com segurança.
A Agência Brasil também tentou entrar em contato com o Ministério de Minas e Energia, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.
A situação em Itatiaiuçu continua a evidenciar os desafios enfrentados pelas comunidades afetadas por atividades de mineração e o papel crucial das autoridades governamentais e das empresas responsáveis na proteção dos direitos e na garantia da segurança e bem-estar dos cidadãos. Enquanto os esforços para reparação e prevenção são empreendidos, a população local permanece em constante alerta, ciente dos riscos associados às atividades industriais em suas proximidades. O desenrolar dessa história continuará a ser acompanhado de perto, com a esperança de que medidas eficazes sejam implementadas para mitigar os perigos e promover uma convivência harmoniosa entre as comunidades e as empresas que operam em seu entorno.
Fonte: Agência Brasil
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