“Estrada sem Lei” é um western com rangers, fords e metralhadoras. Pros fãs de Kevin Costner matarem a saudade dos seus clássicos dos anos 80.
“Estrada sem Lei” – Um Western com Rangers, Fords e Metralhadoras
O novo filme a entrar para o catálogo da Netflix, “Estrada sem Lei”, traz dois grandes atores dos anos oitenta e noventa, Kevin Costner e Woody Harrelson. Eles encarnam os rangers que perseguiram o casal de criminosos notoriamente conhecidos como Bonnie e Clyde.
Costner é um daqueles atores que trazem consigo uma certa áurea, criada a partir de tantos personagens icônicos que ele já representou, como Wyat Earp e Eliot Ness. Em “Estrada sem Lei” Costner faz um misto destes personagens, trazendo um ar de nostalgia para quem o acompanhou nos últimos trinta anos e sentia falta destes filmes cheios de tiros e poeira, inclusive com alguns easter eggs pros velhos fãs se divertirem.
Harrelson, por outro lado, é sempre um alívio cômico bem vindo, mas que em “Estrada sem Lei” tem a função de trazer um pouco de reflexão e humanidade para o personagem de Costner, que poderia ficar sem profundidade se estivesse sozinho na estrada.
A Trama
No recorte feito pelo diretor John Lee Hancock em “Estrada sem Lei”, encontramos os criminosos já com sua fama consolidada, e o governo desesperado para prendê-los após dois anos de caçada infrutífera. Percebe-se ao longo do filme que o casal de criminosos tinha seu grande trunfo justamente na proteção que as pessoas lhes davam, tratando-os como verdadeiras celebridades.
Para resolver a questão, a governadora aceita a ideia de usar os serviços de dois rangers, mesmo tendo desativado este serviço algum tempo antes. Os rangers em questão são Frank Hamer (Costner) e Maney Gault (Harrelson), dois velhos companheiros de caçada que se reúnem mais uma vez para por fim à onda de assassinatos que aterroriza parte do país.
Toda a atmosfera de “Estrada sem Lei” segue na linha de um bom thriller policial, com criminosos terríveis e caçadores implacáveis. A cena em que Frank compra um verdadeiro arsenal para ir atrás dos fugitivos cria uma alta expectativa do momento em que todas aquelas armas seriam usadas.
A caçada constante, a investigação, as mortes violentas, o suspense crescente, e a dúvida que ficamos se os dois caçadores serão mesmo páreos para os criminosos, são todos elementos bem trabalhados pelo diretor, que faz com que torçamos pelos velhos rangers. Mas sob esta roupagem policial o roteiro vai construindo uma outra história, a de Frank e Maney, cada um a sua maneira marcado pelos inúmeros assassinatos que cometeram ao longo da vida.
A História de Frank Hamer
Na vida real Frank Hamer ficou famoso pela caçada a Bonnie e Clyde, mas também teve outros momentos importantes tanto como ranger como em outros cargos que exerceu. Ele ficou conhecido por usar força letal contra criminosos, sendo muitas vezes criticado por isso. Sua carreira começou em 1905, quando capturou um ladrão de cavalos. Sua atuação impressionou o xerife local, que o indicou para juntar-se aos Texas Rangers. Frank tinha então 21 anos, mas desde pequeno ele era notável por sua inteligência e habilidades incomuns com armas.
Em 1906 juntou-se aos rangers e começou a patrulhar a fronteira com o México. Ele abandonaria os rangers algum tempo depois, tornando-se Marechal da cidade de Navasota, Texas, onde teria matado cerca de cem homens em dois anos de serviço. Trabalhou como investigador especial e como xerife, voltando aos rangers em 1915. Os rangers nessa época lidavam com contrabandistas de armas para a Revolução Mexicana, e de bebidas durante a Lei Seca. Em 1922 ele liderou a luta contra a Ku Klux Klan no Texas, salvando 15 pessoas do linchamento ao longo de sua carreira.
Hamer se aposentou dos rangers em 1932, uma semana antes de Miriam “Ma” Ferguson assumir como governadora. Pelo menos 40 outros rangers renunciaram ao cargo, recusando-se a servir sob sua liderança. O próprio Hamer declarou depois que pediu demissão depois de ver uma mulher ser eleita governadora. Em “Estrada sem Lei” fica a ideia de que a governadora teria extinto a ordem dos Texas Rangers devido à sua falta de controle sobre eles.
A Comparação Inevitável
Um dos temas mais abordados da literatura, e do cinema, é a do bandido social. O mais célebre deles, Robin Hood, também vivido por Costner no cinema, cria um tipo de modelo para este tipo quase folclórico. Ele era o ladrão que roubava dos ricos para dar aos pobres, ou pelo menos essa foi a lenda criada ao redor de sua história. Outros personagens, como os piratas ou os cangaceiros, também carregam essa lenda, embora nem todos sejam tão altruístas. Mas se não dão o produto de seu roubo aos pobres, estes pelo menos se sentem vingados por saber que eles roubam dos ricos que lhes exploram.
O casal de bandidos Bonnie Parker e Clyde Barrow, que a dupla de rangers persegue, são um exemplar interessante desse tipo social. Idolatrados pelo público que os protegia, eles não são vistos como ameaças, mas como heróis. E esta lenda só aumentou com a sua morte, considerado o excessivo uso de 130 balas para executá-los. A força excessiva ofuscou os crimes cometidos pelo casal, deixando uma mensagem muito mais clara a respeito do Estado que era capaz de agir de forma extremamente violenta quando desafiado.
Em 1967 essa história ganhou novo fôlego com o filme de Arthur Penn, “Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Bala”, estrelados por Faye Dunaway e Warren Beatty. A química dos atores principais, a trilha sonora com músicas folclóricas americanas, e os cortes rápidos nas cenas de ação, fizeram deste um grande sucesso do cinema. O filme abordava de forma mais problematizada o casal, mostrando camadas que os humanizava, mas sem deixar de mostrar a violência por onde passavam. Ainda assim, a rajada de balas soava um ato de extrema violência contra eles.
“Estrada sem Lei” vem, tardiamente talvez, dar um outro ponto de vista a esta história. Se Frank Hamer não conta com a simpatia do grande público em sua missão, o filme mostra que havia também quem não estivesse contente com o casal de assaltantes e seus atos de bandidagem. O filme mostra como a lenda deles, ao mesmo tempo os ajudava colocando-os num pedestal de adoração para alguns, também trabalhava contra ao elevar suas habilidades a um nível que causava medo mesmo aos que estavam habituados com o uso da violência e de armas de fogo. Esta é a justificativa que o diretor John Lee Hancock parece oferecer para a execução exagerada, em resposta ao filme de 1967.
Duelo de Metralhadoras e Iconografias
O roteiro de “Estrada sem Lei” pega o personagem de Hamer já aposentado, com 50 anos. Usa, então, os fatos históricos para criar um arco de jornada do heroi para ele. Confrontado com o tipo de homem que tinha sido toda a vida, ele encontra em seu companheiro de estrada Maney o contraponto a sua sede de justiça. Diferente de Frank, ele demonstrava mais o incômodo pelas muitas mortes que havia causado, principalmente a de inocentes. Hamer e Gault também são confrontados com a história dos criminosos que estão perseguindo, dois jovens que começaram no crime de forma quase inocente, e que são vistos pela população como herois.
“Estrada sem Lei” acerta em não mostrar logo os criminosos, mas apenas sua silhueta enquanto praticam mortes violentas. Assim somos colocados permanentemente dentro da visão dos dois rangers, que também vão construindo uma imagem do casal que estão caçando. E esta é violenta, sanguinária e implacável. Ao mesmo tempo que nos juntamos às forças dos rangers para encontrá-los, temos medo do momento fatal. Somos lembrados continuamente que o confronto pode resultar na morte deles e não na dos criminosos.
Bonnie e Clyde são mostrados como extremamente habilidosos. Eles usam armas, carros e pessoas, enquanto os rangers mal acertam um tiro, precisam parar pra descansar e são mal vistos por onde passam. Cria-se, assim, um abismo tão grande entre os dois antagonistas que a sensação é a de estar caçando gigantes.
E este é o verdadeiro duelo de “Estrada sem Lei”, o de construções de arquétipos. O confronto entre quem são os rangers e o que eles ainda poderiam fazer para manter a ordem num país que ainda tentava se erguer após a grande depressão, e as pessoas preferiam apoiar os criminosos do que o Estado. A governadora tentava construir uma imagem de controle, enquanto criminosos invadiam uma prisão para soltar seus comparsas, e atiravam em policiais nas estradas demonstrando sua falta de medo.
Neste confronto de imagens, a força foi o instrumento usado para fazer um prevalecer sobre o outro. Mas o exagero na execução pode ter prejudicado mais do que auxiliado nesta que era a verdadeira missão, a de mostrar que o Estado tinha tudo sobre controle. A rajada de balas que pôs fim à vida do casal de bandidos deixou claro que o Estado era capaz de mobilizar as forças que fossem necessárias para impor essa ordem, mas ao mesmo tempo demonstrava sua fraqueza ao mostrar que para manter essa ordem precisava medir forças com os próprios eleitores.
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