Você conhece a história de Noé e do dilúvio? É provável que sim. Mas conhece também a história de Utnapishtim? Então venha saber mais!
Uma Antiga História
Essa é uma velha história que todo mundo conhece.
A humanidade havia se tornado perversa, e um grande tumulto tomou conta da Terra. A ira divina então se virou contra a humanidade, e um grande dilúvio iria destruir tudo. Mas foi achado um homem justo na Terra, e ele recebeu a missão de construir uma arca para salvar sua vida, a de sua família e a de representantes de cada espécie de animal. Ele obedeceu o que lhe foi ordenado, e construiu a arca. Ela era tão imensa que coube todos os animais a salvo.
Quando o dilúvio começou, as águas cobriram a terra por dias e noites. Toda a humanidade pereceu na inundação, exceto os que estavam na arca. Depois de algus dias, as águas começaram a recuar. O homem solta um pássaro, depois outro, até ter certeza de que a água havia baixado. Todos dentro da arca estavam a salvo, e pela fidelidade demonstrada pelo homem um pacto é celebrado entre ele e seu deus.
Essa história foi escrita a milhares de anos, e é de fato um dos textos mais antigos do mundo.
Utnapishtim, o conto de Noé Babilônico
Essa é a história de Utnapishtim, e faz parte do “Épico de Gilgamesh”, uma antiga epopeia da Mesopotâmia que data de cerca de 2100 a.C.
Este poema épico foi escrito em placas de argila cuneiforme e conta a história do herói Gilgamesh, que parte em busca da imortalidade depois que seu amigo Enkidu morre. O “Épico de Gilgamesh” é atribuído principalmente aos sumérios, pois guarda muitas semelhanças com os mitos desta região. Sua história central e os personagens, incluindo Gilgamesh e Enkidu, têm suas raízes na mitologia suméria. Utnapishtim aparece na história como alguém que guarda um segredo antigo, tendo sido o único sobrevivente de um dilúvio catastrófico, e é a ele que Gilgamesh recorre em busca de respostas sobre os deuses e sobre a imortalidade.
Os sumérios são um dos povos que habitavam a Mesopotâmia, região localizada entre os rios Tigre e Eufrates, que hoje abrange os territórios do Iraque, da Síria e a parte oeste do Irã e da Turquia. A Mesopotâmia foi o lar de várias civilizações antigas, incluindo a Suméria, Acádia, Babilônia e Assíria. Essas civilizações desenvolveram sistemas agrícolas avançados, técnicas de irrigação, sistemas de escrita cuneiforme e instituições políticas complexas. A Mesopotâmia é frequentemente chamada de “berço da civilização” devido à sua influência na história humana, contribuindo para o desenvolvimento da escrita, da matemática, do direito e da religião.
Mas como essa história pode ser tão semelhante à de Noé que consta no livro de Gênesis?
Existem várias possibilidades, mas seria interessante primeiro localizar o texto bíblico no tempo também.
Considera-se que o livro hebreu de Gênesis tenha sido escrito entre o século XIII a.C e o século V a.C., embora ele relate fatos acontecidos ao longo de mais de mil anos antes de sua escrita. Como acontecia com muitos povos antigos, os hebreus possuíam uma forte cultura oral, baseada na repetição de genealogias, de códigos morais, de tradições e de histórias antigas.
Com o desenvolvimento da escrita, alguns trechos acompanharam o povo hebreu também na forma de textos. Segundo o que é aceito pela tradição, e é citado no próprio texto bíblico, alguns trechos estavam com eles desde a saída do Egito, enquanto outros teriam sido acrescentados pelos reis ou pelos rabinos durante o período que sucedeu ao exílio na Babilônia. Acredita-se pela tradição que a narrativa de Noé estava desde início no texto, ou seja, desde o século XIII a.C.
O texto do livro de Gênesis é normalmente atribuído a Moisés, um hebreu criado na corte do Egito que teria se refugiado no deserto após matar uma autoridade egípcia. O relato consta no segundo livro atribuído a ele, chamado Êxodo na Bíblia cristã, mas que na língua hebraica chamava-se Shemot, ou “Nomes”.
“Shemot” é derivado do início do texto, que começa com a frase “Estes são os nomes dos filhos de Israel…” (Êxodo 1:1). Portanto, o nome “Shemot” foi escolhido com base nas primeiras palavras do livro, que descrevem a genealogia e os nomes dos filhos de Israel que foram para o Egito e, posteriormente, sua libertação da escravidão sob a liderança de Moisés. Ele conecta o povo hebreu, escravo no Egito, às gerações antigas constantes no livro de Gênesis. Por isso este livro é tão importante dentro do pentateuco. É através dele que os hebreus saídos do Egito se conectam aos antigos patriarcas, e às promessas que seu Deus lhes havia feito de uma terra fértil para habitarem.
Moisés e a autoria do conto do dilúvio
Antes, porém, de escrever estes livros Moisés peregrinou pelo deserto como um fugitivo, e encontrou refúgio na região de Midiã. Esta região histórica fazia parte da península da Arábia, na área noroeste da atual Arábia Saudita e partes adjacentes da Jordânia e do sul da Palestina. Ali ele se casou e passou boa parte de sua vida. Midiã fazia parte do território mesopotâmico, o que para Moisés era um pouco como voltar para a terra de seus antepassados. Como ele mesmo relata no livro de Gênesis, um de seus antepassados mais célebres transitou entre a região da Babilônia, mais a leste, e o Egito. Estou falando de Abraão, o homem que falava com Deus.
A cidade natal do patriarca hebreu era Ur, dos caldeus, uma cidade que ficava no atual território do Iraque. Abraão foi guiado por suas visões para se estabelecer na região entre o Egito e a região mesopotâmica, chamada Hebrom. Sua caminhada foi longa e certamente cheia de histórias antigas, muitas delas mitos que ele rejeitou sistematicamente como idolatria, apegando-se à ideia de que só existe um Deus. Mas algumas destas histórias eram memórias de família, histórias do seu povo, de suas origens, que ele pode ter reinterpretado à luz de suas crenças pessoais.
Muitas dessas histórias certamente chegaram até Moisés em algum momento. No Egito através do povo escravizado, ou através dos midianitas com quem ele habitou. Quantas delas contavam sobre um homem que construiu uma arca para salvar sua família de um dilúvio juntamente com os animais? Essa era de fato uma história fantástica demais para ser esquecida.
Línguas Antigas
Outro fato interessante é que Moisés, considerando-se que tenha sido criado na corte egípcia, devia ser bem instruído nos seus sistemas de escrita: os hieróglifos, a escrita hierática ou a demótica.
Seu texto, contudo, parece ter sido escrito num sistema muito diferente, mais semelhante aos utilizados nas regiões onde ficou abrigado. O acádio era o mais comum destes sistemas, e faz parte da família das línguas semíticas usadas em toda a região mesopotâmica, inclusive em Midiã.
As línguas semíticas compartilham um conjunto de características linguísticas comuns, incluindo a presença de raízes triconsonantais e um sistema de escrita consonantal. O acádio foi amplamente falado e escrito na Mesopotâmia e se tornou a língua de administração e comunicação internacional na região. Nas tábuas de argila encontradas em sítios arqueológicos vemos que suas marcações eram feitas com algum objeto pontudo, registrando riscos retos que combinavam entre si para formar palavras. A semelhança com o sistema hebraico é notável.
Os motivos para Moisés aprender acádio parecem simples. Esse era o idioma mais utilizado na região mesopotâmica. Os antigos mesopotâmios escreveram uma ampla variedade de textos em acádio. Isso inclui textos religiosos, legais, científicos, literários e administrativos. Os registros cuneiformes em acádio estão entre os mais numerosos e bem preservados da antiguidade, e eles fornecem uma rica fonte de informações sobre a história, a cultura e a sociedade mesopotâmicas. Um destes textos célebres escrito em acádio foi o Código babilônico de Hamurabi, um dos sistemas de leis mais antigos do mundo, utilizado por muito tempo na região da mesopotâmia.
Se Moisés precisou aprender o acádio para administrar os bens de sua família, não tinha como fazê-lo sem ouvir muitas histórias existentes naquela língua. Uma dessas histórias pode ter sido a de Utnapishtim. Isso porque, embora o “Épico de Gilgamesh” tenha sido originalmente escrito em sumério, como já foi dito, foi em algum momento traduzido para o acádio, pois foi nesta versão que ele foi encontrado em um sítio arqueológico de Nínive em meados do século XIX: gravado em placas de argila, em escrita cuneiforme, ou seja, em acádio.
As escavações de Nínive foram realizadas por arqueólogos britânicos, incluindo Austen Henry Layard e Hormuzd Rassam, nas décadas de 1840 e 1850. Durante as escavações foram encontradas várias cópias do épico, o que permitiu que os estudiosos comparassem diferentes versões da história e reconstruíssem a narrativa completa. Isso também revelou variações e modificações na história ao longo do tempo. Após a descoberta, os textos foram levados para a Grã-Bretanha, onde foram estudados e traduzidos por estudiosos como George Smith e Henry Rawlinson. A tradução desses textos permitiu que o mundo moderno tivesse acesso a essa antiga epopeia mesopotâmica.
A descoberta de um outro conto sobre um dilúvio ocorrido na antiguidade causou reações diversificadas. Principalmente porque o texto mesopotâmico era mais antigo que o texto bíblico. Se por um lado a repetição da narrativa parece endossar a história de Noé, por outro levaram à acusação de que Moisés teria se apropriado de mitos mesopotâmicos.
A Origem do Mundo e o Conto de Noé
O livro do Gênesis, assim, seria um aglomerado de contos recolhidos de outras culturas com as quais Moisés teve contato. Pelo ponto de vista histórico isso parece não ter problema. O autor reconta a história do mundo conhecido estabelecendo uma origem histórica para o povo hebreu, dando-lhe um sentido de unidade que poderia ter se perdido ao longo dos séculos de escravidão egípcia. Para outros, contudo, a ideia de que a história de Noé possa ter sido influenciada por histórias de dilúvio anteriores, como a de Utnapishtim, pode ser vista como um desafio às crenças tradicionais sobre a inspiração divina da Bíblia.
O debate sobre as semelhanças entre a história de Noé na Bíblia e a história de Utnapishtim no épico de Gilgamesh continua até os dias atuais. Essa questão faz parte do campo de estudos da crítica textual e literária da Bíblia e é discutida por estudiosos, teólogos e pesquisadores em todo o mundo. As semelhanças entre essas duas histórias são notáveis e têm sido objeto de análise e pesquisa ao longo de décadas. Discute-se sobretudo sobre a literalidade da interpretação dos textos, se trata-se de um fato histórico ou de uma alegoria. O problema reside no fato de que esta não é apenas uma discussão acadêmica, ela ocorre sobretudo em contextos religiosos e teológicos.
Para quem não aceita a ideia de que o texto bíblico, e a história de Noé, possa ter tido uma origem mais humana, a simples ideia de Moisés ter se baseado em outras histórias já conhecidas para fazer sua narrativa parece soar como um ataque a sua fé. Contudo, para aqueles que entendem que o texto do Gênesis contém um mosaico de textos literários, históricos e de experiências transcendentais, saber que suas histórias fazem parte de outras tradições culturais não só reforça suas crenças, como as amplia.
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